Entre Judas e Tiago. Entre nós
“Portanto, eis que vos digo: não vos preocupeis por vossa vida, pelo que comereis, nem por vosso corpo, pelo que vestireis. A vida não é mais do que o alimento e o corpo não é mais que as vestes? Não vos preocupeis, pois, com o dia de amanhã: o dia de amanhã terá as suas preocupações próprias.“A cada dia o seu cuidado”
MT.6:25 e 34
Conversando com pessoas amigas, que ao saberem que somos espíritas, perguntam se não é difícil viver uma vida tão rígida e disciplinada. Ora, naturalmente, não sabem eles o que vai em nosso íntimo, um verdadeiro emaranhado de desejos e paixões, quimeras e ilusões como ocorre com todos, guardadas as medidas singulares à cada qual. A disciplina mental e o controle emocional anda não são estandartes que possamos sustentar sem mentir, e é exatamente por isso que nos tornamos ansiosos e evasivos, permanecemos furiosos quando desiludidos e inconsoláveis quando não atendidos.
O Amanhã nos atormenta, o passado nos condena e o presente deixa de ser, dessa maneira, uma dádiva. Como solucionar tal inquietação? Como equilibrar as ações do pensamento de maneira a não desestabilizar o ritmo suave do coração tranqüilo?
Meditando sobre certo trecho do texto de Humberto de Campos, achamos uma chave que, por comparação pode abrir uma porta larga ao entendimento: “Jesus havia chegado a Jerusalém sob uma chuva de flores. De tarde, após a consagração popular, caminhavam Tiago e Judas, lado a lado, por uma estrada antiga, marginada de oliveiras, que conduzia às casinhas alegres de Betânia. Judas lscariotes deixava transparecer no semblante íntima inquietação, enquanto no olhar sereno do filho de Zebedeu fulgurava a luz suave e branda que consola o coração das almas crentes.” Judas inquieto, Tiago tranquilo.
Ora, por que será? Judas estava preocupado com o século, o que não é ruim, em princípio. Mas, deixou com que a parte efêmera do poder, no destaque dos que habitam, temporariamente, as posições transitórias representando interesses inconfessáveis e desejos toscos trajados de ideologias mais temidas que queridas tomasse seu coração por completo. De maneira, via em Jesus um homem de força mais do que um ser de amor. Na esteira dessas mesmas preocupações o exercício do poder seria necessário, desqualificar adversários seria urgente, e garantir a abundância de pão ao povo eleito seria a glória, sobretudo se essa abundância pudesse contrastar com a escassez dos adversários.
Em princípio, Judas age sem o auxílio dos padrões fundamentais do Evangelho, confunde imanência e transcendência em seu afã pelo sucesso e deixa de avançar material e espiritualmente. Na prática o que há em seu modus operandi é um misto de pressa e medo.
Tiago é a expressão da serenidade e do equilíbrio. Comparando-o com Judas podemos perceber os resultados das diferentes formas de se conviver com Jesus. Judas olhava sem ver; Tiago enxergava ao sentir. Quantos de nós não gostaríamos de ser Tiago? Mas, infelizmente, Tiago é um tipo distante do que orienta nossas ações. Somos mais orientados pelo medo e pela pressa, pelo receio e pelo desejo do que pela fé nas palavras do Mestre.
Curiosamente, aproxima-se o dia de “malhar o Judas”. Ensejo para que desejemos descarregar nossa fúria em um objeto exógeno, quando deveríamos procurar as imperfeições que nos ancoram em mar revolto, a fim de buscarmos livres, finalmente, a praia ricamente arborizada.
Vamos ao “boneco”. É preciso fazê-lo, colocar o nome e esfolá-lo. Que tal fazer isso de maneira diferente? Ora, bem sabemos que Judas já não está mais nas paragens tortas nas quais nos encontramos. Pois, o excelente repórter do além-túmulo, nosso queridíssimo Humberto de Campos já nos pôs a par de sua redenção a começar pelo auxílio do próprio Mestre após o ato derradeiro e desesperado do suicídio.Vamos deixar Judas Iscariotes de lado, ele não precisa de nossa piedade, pois está bem acima de nós. Vamos observar o Judas que habita nossos corações e mentes!
Não é difícil. Façamos o boneco! Lembrando que é preciso selecionar bem os materiais, panos, farrapos e algo mais que nossa criatividade sugerir; coloquemos um nome, ou vários nomes, quantos nomes desejarmos; batamos.
Os materiais para a formação do boneco são nossos desejos estranhamente profundos e obscuramente arraigados em nosso ser. Os desejos de ter, ter mais, mais e mais na medida incalculável do delírio da posse; há quatro nomes para o boneco, ou um nome e três sobrenomes: Egoísmo, Vaidade, Orgulho, Personalismo; bater não é destruir, muito menos operar com a violência, mas, burilar e aprimorar a massa bruta de nossas intenções descabidas.
Não se trata, portanto, de esfolar o tal boneco imaginário, mas, modificá-lo aos moldes do amor puro e simples, meticulosamente, com pouca força e muita precisão como quem maneja os instrumentos de um escultor, que vê uma obra de arte onde muitos vêem apenas um bloco rochoso.
Por traz do homem egoísta e ansioso, descrente da solicitude da vida e amargo pelas decepções frente às não satisfações do ego existe um futuro espírito puro, enfim, um anjo em potencial. Somos a rocha preciosa ainda bruta. As aplicações precisas do Evangelho em nós mesmos funcionarão como pancadas necessárias de um escultor caprichoso que lasca sem ferir, pois busca a revelação da simetria perfeita escondida no caos amorfo de um bloco de raro mármore.
Distante da ação no campo da caridade espontânea o anjo não despontará. Há que sorver o líquido morno e bendito aquecido pelos atos luminosos de abnegação e fé; negar-se a si mesmo e buscar ser o homem novo. Somente seremos essa pessoa transformada pelo trabalho no bem do próximo.
Sem a luz do serviço, que em princípio machuca os olhos de quem se acostumou com a penumbra do descanso excessivo o ser verá sempre fragmentos de verdade, e permanecerá na ansiedade quanto ao dia de amanhã
Finalmente, há um Tiago querendo acordar em cada um de nós. Há esse sentimento de completude e saciedade, há essa estabilidade mental querendo estabelecer a boa ordem da fraternidade nas ações de nós outros.
Ao despertar para mais um dia de trânsito comum nesse mundo, abramos os olhos do para o século, não esquecendo de abrir o coração para o amor. Pois se a preocupação por ganhar o sustento do amanhã não é ilícita, a necessidade de ganhar corações à rede de fraternidade que deve envolver a todos nós, amparando-nos mutuamente é urgente; é para hoje; é para agora.
É com o espírito acesso pela luz do carinho singular do Mestre, que devemos fazer o melhor para os que nos cercam hoje mesmo, entregando as dores de amanhã nas mãos de Deus.
Alberto Varjão Jr.
albertorjbr@gmail.com
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